9 de out. de 2010

Lauro Rodrigues

O texto a seguir é de autoria de Paulo Monteiro, sabido do grande volume de palavras e informações que nele contêm eu indico aos amigos(as) que gostam de poesia e cultura que dediquem alguns minutos e o leiam por inteiro.

História
Lauro Rodrigues: pioneiro do MTG contemporâneo

Enquanto a poesia gauchesca uruguaio-argentina é uma transformação da antiga poesia payadoresca oral em obra literária escrita, de conteúdo militar e militante, durante as guerras da independência daqueles países, a gauchesca brasileira, bastante posterior, é uma criação do romantismo. Daí a marca dos clássicos românticos, que fazem parte do cânone literário “culto” sobre os poetas populares sul-rio-grandenses.
Sobre o produtor e apresentador de “Campereadas”, pesam outras duas influências. A primeira delas é dos gauchescos platinos. Não é à toa que ele se refere ao El Viejo Pancho, pseudônimo do espanhol José Alonso y Trelles (1857-1924), que residiu muitos anos no Uruguai, tendo escrito um pequeno volume que foi lido avidamente por uruguaios, brasileiros e argentinos; Paya Brava. A tapera, o umbu, o quero-quero temas explorados pelo El Viejo Pancho, dão título a poemas enfeixados em Minuano. A segunda influência é dos poetas populares sertanejos e do Nordeste brasileiro, máxime Catulo da Paixão Cearense.
Não é à toa que o autor de O Luar do Sertão oferece o seu “cajado” ao poeta de Santo Amaro. “Mulata” e “cabocla”, dois termos para definir tipos femininos, produtos da miscigenação com o europeu, não são muito frequentes entre os gauchescos brasileiros. Para “cabocla” as expressões correspondentes são “china”, “chininha” e “chinoca”, procedentes do português “chim”, mais comum do que o atual “chinês”. Todo aquele indivíduo com olhos amendoados ou meio rasgados era um “chim”. “China”, como hoje chamamos comumente à mulher morena de “negra” e a mulher clara de “gringa” ou “alemoa”, era a forma carinhosa com que o gaúcho se referia à sua índia ou cabocla. Cabocla é o correspondente para os poetas de outros estados à china dos gauchescos.
“Filha do pago”, que consta entre as páginas 42 e 46 de Minuano transpira a poesia sertaneja de Catulo, sem o peso dos regionalismos nordestinos, que encontra correspondência entre alguns poetas rio-grandenses, lançando toneladas de expressões regionais sobre seus poemas. “Cabocla”, que faz parte de Invernada Vazia, é, também, outro poema com idêntica transpiração.
O próprio vocabulário de Lauro Rodrigues contribui para que ele seja diferente dos poetas gauchescos posteriores. Não introduz à força os regionalismos. Emprega sanfona e gaita em lugar de cordeona. Essa moderação vocabular também auxiliou na repercussão dos seus poemas. Os gauchismos, nele, são espontâneos e naturais, numa linguagem confessional, como se abrisse sua alma (psique), sua vida aos leitores.
Outro tema presente na poesia popular, além fronteiras do Rio Grande do Sul, é o da tragédia amorosa provocada pela morte precoce da mulher amada, seja esposa, amante ou namorada. Encontramo-lo nos poemas de Lauro Rodrigues. Dois deles ficaram muito conhecidos: “Sinhá Maria”, de “Minuano”, e “Historieta”, de Invernada Vazia. No primeiro é a jovem namorada que falece; no segundo, é a jovem esposa.
Falei antes em “El Viejo Pancho”. Lauro Rodrigues dedica-lhe todo um poema de Senzala Branca, onde se refere ao Martín Fierro, a grande obra do argentino José Hernández.
Em 1948, passada a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos impunham ao mundo seu dólar e sua cultura. A rebeldia quixotesca dos jovens estudantes do Colégio Júlio de Castilhos, de Porto Alegre, que culminaria no atual MTG, era uma espécie de contracultura. Em 1957, quando do lançamento do quarto livro do poeta de Santo Amaro, as orquestras americanas eram uma moda avassaladora e rock and roll começava a aparecer. “Um silêncio domina tudo”, e nesse ambiente, “Viejo Pancho, crioulo de outras plagas”, representa “a voz da acordeona – alma campeira! – em contra-ponto à musica estrangeira”. Foi um grito contra a desnacionalização da cultura.
Os nove anos do Movimento Tradicionalista Gaúcho preocupavam o vanguardeiro desse movimento. Os Centros de Tradições Gaúchas espalhavam-se Rio Grande afora. Invernadas campeiras, conservando as práticas laborais dos homens do campo, e invernadas de danças, difundindo as danças típicas do estado, faziam sucesso. Costureiras, modistas e alfaiates fabricavam pilchas (roupas típicas) para homens e mulheres. Discos, livros e cursos difundiam o tradicionalismo. Cursos de danças eram ministrados a peso de dinheiro, “novas danças” eram incorporadas aos repertórios das “invernadas artísticas” dos CTGs…
Como Karl Marx costumava repetir no século XIX, o capitalismo transforma tudo em mercadoria. O gauchismo também virou mercadoria. Contra essa “indústria cultural” levantou-se Lauro Rodrigues, velho leitor de Manuel Maria Barbosa du Bocage. O trocadilho sobre o incêndio dos “panos de trinta e cinco” tanto pode se referir à “Revolução de 35” quanto ao “35 CTG”…
Quando verificamos que, dois anos antes da primeira edição de Senzala Branca, Paixão Côrtes e Barbosa Lessa publicaram Suplemento Musical do Manual de Danças Gaúchas e um ano antes (1956), davam a lume a primeira edição do próprio Manual de danças gaúchas, entendemos o endereço da sátira de Lauro Rodrigues.

Pelegueando

Bueno amigo, acabou-se
o pampa de antigamente!
E por me achar descontente
com o tranco que a vida leva,
aparto um verso maleva
como piá de bodega
e saio muito xobrega
a provocar arruaça,
em meio dessa chalaça
que chamam de tradição…
Venho do fundo do tempo
das bocas que se arrolharam,
quando, sem mais, incendiaram
os panos de “trinta e cinco”,
por isso acho engraçado
olhar os tauras de agora
vestindo bombacha e espora
como mocinha de brinco…
Mas não lhes tiro a valia
pois sempre tem serventia
o rabo, a guampa e o casco,
com que se atiça o braseiro,
traz água para o saleiro
e se borrifa o churrasco…
Lamento que se embicando
p’ra os rumos da pacholice,
por vaidade ou gabolice,
a tradição degenere,
pois, no fervor da arruaça,
vai o pago de raça
viçando p’ras intempéries…
As cantigas do passado
têm novos donos que eu sei…
E os índios enquadrilhados,
num jeito louvaminheiro,
vão repontando mentiras,
como senhores da grei…
Mascates de antigas glórias,
mercadejando as histórias
que o pampa guardou p’ra si,
vão, na ganância do gesto,
passando cincha e cabresto
na altiva Piratini…
São frades sem catecismo,
profetas de um neologismo
na algaravia do drama;
bastardos de uma epopéia
lembram Simão da Judéia
são divindades de lama…
Franciscanos da cultura
sobem do chão para a altura
como os abutres odientos
que singrando as amplidões
vão digerir podridões
nos torvos papos nojentos…
Velha estirpe legendária
que a negra mão mercenária
fantasiou na ribalta,
no garimpo dos “guichets”
e não entendo os “por quês”
da exaltação dessa malta…
E nessa subservência
vai rastejando a querência
de forma tão deprimente
que obriga o estro do vate
a provocar um combate
de protesto permanente…
Em meio aos dias sombrios,
enxovalhada nos brios,
por bailarinos plagiários,
eu creio que a alma pampeana
há de se erguer soberana
ao som de rubras hosanas
p’ra o teto de um relicário!
Se a história é cousa divina
não pode a mão assassina
lhe mutilar a grandeza,
por isso eu entro na liça
pedindo ao Tempo, justiça;
ao Júri, o dom da franqueza…

Em Sensala branca a influência de Castro Alves é marcante, a começar pelo poema que abre o volume. As referências bíblicas, as apóstrofes, todas as figuras de retórica e linguagem características do grande condoreiro baiano. O próprio título é uma referência ao “Poeta dos Escravos”. Lauro Rodrigues pretende a si mesmo exorcizar em versos a “senzala branca”, a escravidão do salariato.
Esse estilo condoreiro continuará em sua última obra editada A Canção das águas prisioneiras, como no poema “A canção do tempo que não virá”. Criação artificial, o tradicionalismo gaúcho, pouco a pouco foi sobrepondo o caricatural ao histórico. E as coisas não poderiam transcorrer de maneira diferente. Cada vez mais a população sul-rio-grandense urbanizou-se. As bases rurais do gauchismo foram abandonadas. O romantismo de gaúchos como Lauro Rodrigues foi perdendo lugar para a pantomima a que se prestam poemas que falam de tiros, facadas e mulheres raptadas, temas esses que se prestam melhor às apresentações circenses nos concursos de declamação.
Os declamadores mambembes, crescidos longe da realidade rural, não encontram dramaticidade num poema, como o intitulado “Tupan”, em que é cantado o amor de um homem por seu cachorro perdigueiro.

Paulo Monteiro, ex-presidente da Academia Passo-Fundense de Letras e membro do Instituto Histórico de Passo Fundo

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